O cuidar e o sonhar.
Por uma outra visão
da ação terapêutica e do ato educativo
De forma
geral, as ações terapêuticas e educativas estão presas a parâmetros e normas,
de acordo com referências coletivas e consensuais. Porém, para que sejam
efetivas, devem-se considerar as características individuais, como as
especificidades no desenvolvimento, o significado individual dos desvios de
normas, de padrões e dos sintomas que cada um manifesta.
No processo de
desenvolvimento, faz-se necessário a presença de outro ser humano, para a
superação do desamparo. E é esse pré-requisito que vem a constituir a base de
toda a relação terapêutica e educativa, e de onde o cuidar extrai a sua
essência.
Diante disso,
podemos definir os dois tipos de relação. A primeira, terapêutica, é a relação
que se estabelece entre uma pessoa que sofre buscando um alívio e alguém que
supostamente pode aliviá-la, de forma a tentar trazer de volta, um estado
anterior, considerado normal, e que, por distúrbio ou disfunções, desviou o padrão
de equilíbrio. Já a segunda, educativa, é a relação que se estabelece entre o
sujeito que, para desenvolver-se, busca orientação de alguém que seja capaz,
para trazer a ideia de formação, com a aquisição de habilidades e competências.
A educação
traz ao indivíduo a orientação, de acordo com normas e métodos socioculturais
determinados, e a partir disso, constrói-se o conceito de bem – aquilo que se
encaixa nas normas orientadas – e mal – quando não se encaixa dentro das normas
passadas sob orientação.
No entanto, a
maneira como se explicam esses dois conceitos, quanto a sua origem, métodos e
especificidade, trazem à tona uma reflexão sobre a ideia de normalidade,
associada ao desenvolvimento humano, e suas perturbações. Assim, seria
terapêutico sempre priorizar a eliminação de um sintoma ou mesmo aceitar certos
padrões associados à ideia de saúde? Ou ainda, seria educativo tornar
inquestionável a necessidade de adaptação a certas situações de saúde, sem ao
menos, tentar transformá-la?
“Deitado
havia semanas naquele mesmo leito, o olhar no vazio, sem dizer palavra, ele
resistia. Nada mudava. Não melhorava, não piorava. Vivia? (...) Muitos, aos
poucos minguavam na visita. Outros adotaram os monitores como únicos
instrumentos de seu saber.
Diziam os médicos que era tudo o
que restava fazer. Pois tudo já havia sido feito.
(...)
Mas Mariane
persistia. Dia após dia, debruçada à sua cabeceira, acariciava-lhe o braço,
sussurrando-lhe ao ouvido as novidades, noticias daquele mundo que prescindia
de sua presença. Aproveitava cada minuto daquela visita para recordar cenas de
suas vidas. O primeiro encontro, os lugares que juntos conheceram, tudo o que
construíram.
(...)
No
quadragésimo terceiro dia, Jerôme abriu os olhos. (...) O intensivista
aproximou-se para medir seus reflexos. Hesitantes, respondiam. Os marcadores
clínicos indicavam que o organismo começara a reagir. (...) Não pareceu
surpresa quando ele começou a responder-lhe, com dificuldade, tomando ainda
tropegamente a iniciativa de pedir a ela notícias daquele mundo de onde
percebia ter se ausentado.”
A partir desse
trecho, ficam evidenciadas as controvérsias existentes em relação à terapêutica
e a educação, marcadas por concepções de adaptação e modelagem fixados em
padrões e ideais centrados em referências coletivas, que muitas vezes sobrepõem
as individuais, e ainda, a tentativa de eliminação do que se conceitua como
mal, que neste caso, apresenta-se como a tentativa de não aceitar a situação e
tentar revertê-la. Essa visão ainda mostra a alienação existente sobre as normas
e padrões pré-estabelecidos, que muitas vezes, não respeita a necessidade de
compreensão do indivíduo.
A compreensão
do cuidar está justamente no resgate dessa essência de transformar a
aprendizagem ou a terapia. E esse cuidar, que envolve uma relação com outra
pessoa, traz à mente, marcas de
experiências com outros seres humanos, e a depender dessa relação, trará marcas
instituídas de satisfação, frustração, dor, prazer, amor e ódio, complementando
o processo de desenvolvimento e integridade do ser humano.
O que se
observa no doente, é algo que pode ser comparado com o nascimento de um bebê.
Ao nascer, o bebê necessita, obrigatoriamente, de cuidado, amparo e proteção,
fatores que o circundava durante o período intrauterino, e que agora remete
essa ação diretamente à mãe, ou alguém que o possa fazer. O doente fica
submetido ao desconhecido, ao sofrimento, ao novo, numa situação que a doença
traz a ele experiências da mesma natureza do nascer, ou seja, de alguém que
precisa de cuidado e amparo, e que por meio de cuidados, pode-se trazer a
esperança à sua realidade.
Esse cuidado
com o doente, faz com que ele se sinta à vontade e , a partir disso, pode trazer
de volta, muitas de suas lembranças, de momentos bons, planos, conquistas e, dessa
forma, traz a fantasia ao seu mundo, permitindo-o que sonhe. Essa experiência
desempenha um importante papel de permitir com que o doente, de certa forma,
fuja da realidade, amparando-se ao mundo da fantasia. Assim, esse doente passa
a amparar-se em bons pensamentos, permitindo que o seu aspecto psicológico
afaste-se do que vem a configurar como esgotamento físico, uma vez que, o corpo
encontra-se debilitado.
Portanto, o
cuidar caracteriza-se como colocar-se do lado de um sujeito e debruçar-se sobre
a sua dor. E o ato educativo entrelaça-se com o cuidar, uma vez que, o doente
encontra-se com medo, diante do mundo desconhecido da doença e do desamparo, e
é o cuidador quem deve ampará-lo e conduzi-lo a um processo educativo, a
respeito da sua nova realidade e adaptação, permitindo que ele ainda apresente
perspectiva e esperança diante da sua situação.
Fonte: "Humanização e Cuidados Paliativos", 4ª
edição: outubro de 2009; Leo Pessini, Luciana Bertachini.
- Por: Johnson Barreto.
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